O autor e pesquisador Ricardo Lima cita, em um de seus trabalhos, um importante texto da poetisa Cecília Meireles, que já na década de 50, alertava para os perigos do excesso dos produtos industriais:
“O mundo feito à máquina não compreende os bordos irregulares do barro, não gosta dos vidrados escorridos desigualmente, não aprecia a boniteza torta das canecas, das jarrinhas sem equilíbrio total.”
Ou seja, para além dos produtos iguais e sem vida, que não possuem história ou sentimento, o artesanal destaca-se como rota de encontro.
Redes de pesca reutilizadas. Foto: Ateliê Nara Guichon.
Na distância do natural com o humano, o objeto feito manualmente é uma forma de saber e percepção que convida o olhar. É também uma forma de tributo, da humanidade com o meio ambiente, religando pontos desconexos e abrindo uma nova possibilidade de diálogo com a Terra.
Você já parou para pensar na diversidade do artesanato brasileiro? Cada região expressa sua história através do saber manual. Uma grande riqueza de técnicas que registram e contam a história de nosso povo.
Neste universo de texturas, ideias e cores, o artesanato passa a cumprir também uma função socioambiental. A produção artesanal de peças feitas com materiais recicláveis ou reutilizados mostra-se como uma alternativa viável para a promoção da justiça social e integração das comunidades. Deste modo, faz-se necessário compreender o que de fato é artesanato sustentável e como ele pode ser promovido.
Uma nova forma de ver o artesanal
Apesar de sua diversidade e qualidade, apenas recentemente o artesanato começou a receber o devido respeito em nosso país. Neste cenário é comum que alguns artistas acabem fazendo mais sucesso no exterior do que aqui. Isso acontece devido ao mito, criado pela indústria comercial, de que o produto feito a mão não possui boa qualidade. Mas isso começa a mudar.
A verdade é que muitas pessoas passaram a descobrir o verdadeiro valor das peças artesanais, que, quando feitas com cuidado e dedicação, são duráveis, funcionais, possuem design único e enorme valor cultural e artístico.
Não podemos mais falar em artesanato sem falar também de meio ambiente. Este tema se tornou peça-chave de nossa sociedade e que engloba diversos setores, desde a alimentação, vestuário e consumo em geral, até as novas formas de energias renováveis e transporte.
Numa sociedade cada vez menos conectada aos valores naturais, o artesanato feito com materiais que de outro modo seriam descartados, se mostra como uma forma de retorno às origens. O contato com os elementos minerais e vegetais, assim como o novo olhar sobre objetos descartados ou indesejados, pode revolucionar a nossa economia e a forma como interagimos como sociedade.
Exemplo de fibras e redes para reuso. Foto: Instagram Nara Guichon.
O que de fato é artesanato sustentável?
Embora exista uma grande diversidade de técnicas artesanais, a produção sustentável demanda o cumprimento de certos padrões éticos e de qualidade. Desta forma, não basta apenas ter boa intensão na hora de criar uma peça, é preciso que o artesão (ou artesãos, no caso de grupos e cooperativas), possua apurado senso estético para desenvolver um projeto verdadeiramente sustentável.
A pesquisadora Claire Santanna Freeman possui uma relevante consideração sobre esta modalidade de artesanato. Para ela:
“A dimensão da renovação sustentável da extração de matéria-prima e do uso consciente de energia limpa, na confecção das obras artesanais, é incorporada como ação de preservação ambiental do ecossistema local na medida em que agrega o valor da natureza aos produtos artesanais dessa cadeia e insere o senso de racionalização qualitativa e quantitativa nas extrações e nos cultivos.”
Em outras palavras: a base do artesanato sustentável depende de uma análise da origem da matéria prima e no seu impacto no ecossistema local. O artesanato deve ainda possui um valor humano e ecológico para além do valor material. Segundo o site Viva Green:
“O produto sustentável é aquele que apresenta o melhor desempenho ambiental ao longo de seu ciclo de vida, com função, qualidade e nível de satisfação igual, ou melhor, se comparado com um produto-padrão.”
Quando aplicamos essa regra ao artesanato temos que levar ainda em conta não apenas o desempenho ambiental, mas também as questões culturais e sociais, uma vez que este fazer manual dialoga com o ambiente onde é produzido. Ele deve ser parte de uma microeconomia justa, que remunere seus criadores e estimule ainda a vida em comunidade. É um ciclo, onde cada etapa deve ser realizada com atenção.
A importância da origem da matéria prima e modo de transformação
Esta atual forma de expressão faz uso de diversos tipos de matéria prima, sendo a própria natureza uma grande provedora de elementos, levando o artesão a se conectar, conhecer e respeitar o seu entorno; fonte de sua matéria prima.
A obtenção destes materiais deve estar intimamente ligada aos ciclos vitais da flora e o equilíbrio sistemático do ambiente local. A extração desses elementos não deve ser feita em escala industrial, mas sim de modo a garantir a renovação natural dos ecossistemas, cabendo ao artesão cuidar e estimular a reprodução das espécies obtidas, agindo de forma consciente e respeitosa para com o ambiente.
Podemos citar como exemplos as bonecas de barro do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, criadas a partir do barro e argila local, respeitando os limites de extração e empregando pessoas da comunidade. Ou ainda os cestos e trançados do Norte do Brasil com forte influência indígena, criados com fibras naturais obtidas através do uso consciente dos cipós regionais.
A outra forma de obter matéria prima para as peças de artesanato sustentável é através da reciclagem ou reuso. A reciclagem, que lida com elementos secundários, implica num processo mais complexo, de transformação de um determinado elemento (plástico, vidro, metal, fibras, tecidos, papel) em outro objeto com função diversa.
Já o reuso não transforma o elemento dentro de um novo ciclo de produção, mas o reaproveita em outras funções. A reutilização se resume a um novo modo de olhar para um objeto ou elemento, visando da-lhe novo valor e significado, combatendo o desperdício.
Um exemplo de reciclagem é a transformação do papel jornal descartado em novos tipos de produtos, como telas, cúpulas de abajur ou peças de decoração. Já o reuso pode ser exemplificado pelo trabalho do ateliê Nara Guichon com as redes de pesca, transformadas em esponjas, chales e outros objetos.
Tapete feito com fibras de redes de pesca. Foto: Instagram Nara Guichon.
O modo de produzir é essencial
Além de cuidar que a origem da matéria prima seja ecologicamente correta, a produção das peças artesanais também precisa respeitar os princípios sustentáveis. A confecção deve estar alinhada com boas práticas ambientais.
Um bom exemplo é o processo de Ecoprint, desenvolvido pelo ateliê Nara Guichon desde 2013. A escolha de plantas locais, algodão orgânico brasileiro para realizar estampas representam o respeito ambiental em todas as etapas do processo.
Outro caso interessante é o da produção de cerâmica artesanal. Embora em muitos lugares todo o processo de obtenção de argilas seja ecologicamente correto, muitos fornos de queima são alimentados com madeira sem procedência, muitas vezes retirada de áreas de preservação ambiental. Ou seja, todo o esforço em criar uma peça que poderia ser ecologicamente correta se esvai quando a mesma é feita utilizando fornos com madeira de florestas e matas nativas.
Outro caso interessante é o da produção de cerâmica artesanal. Embora em muitos lugares todo o processo de obtenção de argilas seja ecologicamente correto, muitos fornos de queima são alimentados com madeira sem procedência, muitas vezes retirada de áreas de preservação ambiental. Ou seja, todo o esforço em criar uma peça ecologicamente correta é inútil se a mesma peça for criada tendo corte de árvores em sua manufatura.
É preciso pensar no futuro da peça
Origem, manufatura e utilização. O artesanato de origem sustentável precisa pensar em cada uma dessas fases. Após a compra e utilização da peça, o artesão deve pensar em como poderá ser descartado aquele item. Diz-se que a reutilização, ou reciclagem perfeita não há. O que podemos fazer e investir em criações feitas para durar.
Um acessório pessoal, um vaso de cerâmica ou um xale de fibras naturais durará muito mais que uma peça comprada numa loja de departamento, as quais não atendem requisitos básicos de preservação dos recursos naturais e de justiça social.
A criteriosa seleção dos fios, fibras, pigmentos, argilas e demais compostos garantem que os trabalhos artesanais não sejam descartáveis. Quando a peça perder sua funcionalidade, seus elementos poderão ser reaproveitados novamente. Aqui faz-se a ressalva para a importância do artesanato biodegradável, que uma vez descartado, volta à natureza sem deixar rastros.
Em conclusão
Valorizar o artesanato sustentável é valorizar também a vida e a equidade social. Reciclar, reaproveitar, reusar – eis alguns verbos que devem reger nossas ações atuais e futuras. Ao mudar o olhar sobre os objeto ao nosso redor poderemos descobrir novas funções, novas formas de beleza e comunicação. O artesanato surge assim como uma ponte entre pessoas, natureza e o mundo material. Sua prática é benéfica para alma, para os sentidos e para o planeta.
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